quinta-feira, 16 de outubro de 2014

OS LENHADORES


OS LENHADORES
       AO AMANHECER de um dia de outono, dois homens seguiam através de um pinheiral. A cada lado se erguiam os troncos, direitos como colunas, e, muito acima das cabeças daqueles homens, os ramos formavam densa cobertura verde.
       O tapete de relva que pisavam amortecia o som de seus passos. Timothy era baixo e corcunda, com os braços compridos e fortes. Apesar de sua deformidade física, e da barba e cabelos escuros emaranhados, era amável. Com o rosto voltado para cima contemplava Raymond. Este, recém-chegado ao acampamento, era mais novo, alto e forte, e andava orgulhosamente ereto. Era louro, de feições bem marcadas e olhos azuis.
       – Raymond, você tem muito que agradecer.
       – Eu?
     – Sim – e Timothy recusou-se alegremente a prestar atenção no tom de escárnio na voz do companheiro. – Nada sei de sua vida, dos anos que ficaram para trás, nem sei o que fez você vir para este lugar; mas é alto e forte, conhece livros e deve ter tido muitas oportunidades. Os rapazes aqui são diferentes, mas tudo demonstra que você já teve sorte na vida, Raymond.
        Logo chegaram a uma clareira no bosque. Timothy atirou o casaco ao chão, pegou no machado e começou, com golpes fortes, a cortar um pinheiro alto.
         Raymond ficou parado, em profunda meditação.
       Oportunidades? Sim, de fato não lhe tinham faltado, mas não as havia aproveitado. "Ninguém tem o direito de se intrometer na minha vida", pensou consigo, procurando esquecer-se dos conselhos de seu idoso pai."Bem, já me encontro livre das velhas superstições; contudo às vezes me pergunto se esta liberdade vale o preço que paguei para a obter..."
         O acampamento Haskin estava situado no norte de Minnesota.
        Havia apenas três semanas que Raymond chegara. Os homens eram rudes incultos. Muitos deles tinham o vício da embriaguez, enquanto que o praguejar e o desprezo pelo dia do Senhor eram constantes e não se constituía uma exceção à regra.
         Timothy havia sido membro do grupo por muitos anos. Apesar de sua falta de inteligência e de sua deformidade física, era popular entre seus  companheiros. Surpreendia a todos sua amizade pelo alto Raymond, manifestando a sua admiração por este de muitas, embora modestas formas,
assim merecendo do jovem amável complacência.
       Certo dia, quando caía forte nevasca por já ter chegado o inverno, Raymond e Timothy trabalhavam com um numeroso grupo de lenhadores.
           De repente, uma árvore enorme tombou, caindo com grande estrondo.
       Acima do barulho destacou-se um grito de horror e sofrimento. Era Timothy, o pobre aleijadinho. Por desgraça fora colhido por um grande ramo da árvore, que agora o prendia ao solo. Raymond foi o primeiro a chegar perto dele. Com todo o cuidado, os homens libertaram-no, encontrando o pobre corpo encurvado horrivelmente mutilado.
          – Parece que estou no fim, rapazes – disse ele, esforçando-se por dominar a voz. – Ah, Raymond, fique perto de mim. Ai! tenham cuidado!
          Levaram-no ao acampamento. Um homem montou logo a cavalo, para ir à aldeia mais próxima, a quase cinquenta quilômetros de distância, a fim de chamar um médico. Todos recearam que Timothy não estaria vivo quando o médico chegasse, tão intenso era o seu sofrimento. Quando o deitaram numa cama tosca, perto do braseiro, olhou ansiosamente para os rostos dos seus companheiros.
         – É a morte, rapazes. Falem-me de Deus. Nunca me falaram dEle.
       Um silêncio estranho desceu sobre o grupo de homens, silêncio interrompido apenas pelo barulho do vento lá fora. Timothy tornou a falar:
        – Raymond, fale-me dEle. Com certeza você deve saber, pois é diferente de todos nós. Todos fitaram o jovem. Este inclinou-se mais para Timothy, perguntando-lhe:
         – O que é que você quer ouvir?
         – Tudo a respeito de Deus. Como pode ver, pouco sei. Será que não pode falar dEle? Faça uma oração por mim. O rosto de Raymond tomou-se pálido e austero. Seu pai pregava o Evangelho, e ele mesmo já havia estudado a Bíblia. Mas, pela influência de um colega de escola ateu, e pela leitura de livros que este lhe emprestava, a dúvida havia se introduzido na mente de Raymond.        
          Dominado pela ideia de superioridade do seu intelecto, o jovem havia se firmado nessa atitude até chegar o dia em que zombara da fé de sua falecida mãe e negara a existência de Deus.Resolvera desprender-se de tudo aquilo que o ligava ao lar paterno. Escreveu ao pai uma carta arrogante anunciando-lhe sua mudança de pensamento, e saiu para o mundo, sem deixar vestígio de seu paradeiro.
           Seguiram-se dias tenebrosos. Teve que aprender quão vazia é a vida sem esperança em Deus. Teve saudades da voz do seu querido pai; porém o orgulho não permitia que regressasse ao lar e pedisse perdão. No seu desespero, fez-se contratar pelo capataz do acampamento de lenhadores de Haskin.
            Tudo isso voltou-lhe à memória num momento. Este pobre companheiro moribundo estava pedindo-lhe que rogasse a Deus por ele. Soltou dos lábios um gemido.
          – Timothy; não posso! Eu... 
         – e calou-se, incapaz de dizer que não acreditava no Deus a Quem, na hora da morte, até Timothy queria voltar-se.
           – Não pode? Ora, eu julgava que você O conhecesse!
           Raymond não podia mais suportar. Saiu correndo pela porta, em plena nevasca. Andou de um lado para o outro na floresta, sem fazer caso do vento ou da neve. Enfrentou e lutou com o problema do relacionamento do homem com o seu Deus. Estava a sós com Deus. Naquela hora desapareceu o seu ateísmo. As teorias da ciência, nas quais havia deposi-tado a sua confiança, desmoronaram-se debaixo de seus pés. Só ficava um alicerce inabalável.
           Começava a escurecer no quarto onde Timothy estava deitado, quando a porta se abriu e Raymond entrou. Com passo firme, aproximou-se
do moribundo.
             – Timothy; estive em contato com Deus. Ele perdoou- me, apesar de todo o meu pecado. Agora venho falar a você do Seu amor. Com simplicidade e ternura, contou a história do amor de Deus, que O levou a enviar Seu Filho amado ao mundo para morrer pelos pecadores, levando sobre Si os pecados de todos os que depositem a sua confiança nEle como Salvador de suas almas.
           “Deus prova o Seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores" (Romanos 5:8)."
            “O sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de todo o pecado" 
(1João 1.7)."
            Outros se aproximaram, reunindo-se em volta da cama.
      Poderiam eles duvidar da verdade das palavras faladas, quando contemplavam o brilho no rosto de Timothy?
            – Posso ver – disse ele.
            Raymond ajoelhou-se. Um após outro, aqueles homens rudes caíram de joelhos. Nunca Raymond orara como nessa hora. Deus estava com ele.
            Em torno de si estavam homens que, no dizer de Timothy, nunca tiveram
uma chance na vida. Raymond orava com uma fé nascida da certeza absoluta da prontidão da boa vontade de Deus para salvar.
          – Está tudo bem – murmurou Timothy. – Vou para Ele, Raymond!
          Conta a todo mundo...
          – Sim, Timothy, vou passar a minha vida contando a todos.
         – Graças Te dou, meu Deus. – disse o moribundo com a voz jáenfraquecida.
           Mais alguns momentos, e tudo estava terminado.
           Raymond voltou-se, então, para os companheiros:
          –Timothy já partiu, rapazes! Vocês ouviram a minha promessa aTimothy. Peço que me perdoem pelo espírito que tenho manifestado para com todos, e permitam que eu inicie o meu serviço pregando a vocês.
         – Muito bem; queremos ouvir — respondeu o que era capataz. 
         —Quando chegarmos onde está o Timothy, desejaremos ter ouvido.
          Então Raymond contou a história, tão antiga, mas sempre atual, de Jesus e do Seu amor.
           Naquela noite, antes de se deitar, Raymond escreveu uma longa carta ao pai. Ficaria onde estava até receber resposta a essa carta. Na noite seguinte começou a reunir seus companheiros para contar-lhes a história de
Cristo, da Sua morte e ressurreição.
Chegou a terceira noite. No fim da palestra, simples, mas tocante, que Raymond dirigira, a porta abriu-se e entrou um estranho, homem alto e magro, com cabelos brancos como a neve.
           – Meu pai! — exclamou Raymond.
          – Meu querido filho! Vim aqui para ajudá-lo! — E Raymond foi
envolto nos braços de seu pai.
O trabalho assim iniciado no acampamento de Haskin continuou, até
que setenta almas foram levadas ao conhecimento do Senhor Jesus como
Salvador.

Os dois inquilinos - A. T. Schofield

Os dois inquilinos - A. T. Schofield

Suponhamos que um senhorio tenha alugado sua casa a um mau inquilino, que bebe, joga, pragueja e seja uma desgraça para a vizinhança, além de nunca pagar o aluguel. Por fim, o senhorio perdoa todos os aluguéis atrasados e coloca na casa um novo inquilino - tranquilo, respeitável, trabalhador, e com autoridade suficiente para manter o mau inquilino quieto em um dos aposentos da casa. Ele nunca deverá permitir que o mau inquilino tome o domínio da casa, e jamais deixará que ele abra a porta.

Esta é uma figura um pouco grotesca de um cristão. Seu corpo é a casa; sua velha natureza é o mau inquilino; sua nova natureza é o bom inquilino, e Deus é o proprietário do imóvel, pois nosso corpo não é nosso, mas do Senhor. Não moramos em casa própria, por assim dizer, mas somos meros inquilinos - uma verdade solene e frequentemente esquecida.

Surge, então, uma dificuldade. O mau inquilino é um velho muito forte; o novo inquilino é um jovem ainda fraco. Embora ele tenha completa autoridade, ele não tem poder para cumprir o desejo do proprietário da casa. Ele clama por auxílio e o proprietário envia um forte amigo, de sua própria casa, para ajudar o novo inquilino a subjugar o velho inquilino e mantê-lo sob custódia.

O amigo forte é o Espírito Santo, "para que, segundo a riqueza da Sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder, mediante o Seu Espírito no homem interior" (Ef 3.16 Almeida Versão Atualizada). É por isso que com frequência lemos acerca dEle subjugando o velho inquilino ao invés do novo inquilino fazê-lo. Devemos, evidentemente, entender que esse amigo nunca interfere, a menos que o novo inquilino o deseje (veja Gálatas 5.17,25).

Suponhamos que eu convide alguns amigos para virem a essa casa e passarem uma noite agradável com meu velho amigo que mora ali. Eu ouvi dizer que aconteceram algumas mudanças naquela casa, mas não sei exatamente o que aconteceu. A porta é aberta pelo velho inquilino, mas ele está com uma aparência intimidada. Quando eu lhe digo a respeito da razão de minha vinda, ele diz, "Bem, evidentemente eu gostaria de convidá-lo a entrar, mas não posso fazê-lo pois o novo inquilino não gostaria. Você compreende, agora é ele o responsável por esta casa perante o proprietário, e ele é muito exigente quanto a mantê-la em ordem e em silêncio. Eu só vim atender porque ele está dormindo, mas se houver qualquer barulho na casa ele logo me trancará novamente".

Fica evidente, neste caso, que fui atendido pela mesma pessoa que conhecia há tempos, com a única diferença que ele teve seus aluguéis perdoados e que há agora um novo inquilino na casa, do qual ele tem medo.

Suponhamos, agora, que eu volte depois de alguns meses para tentar induzir meu velho amigo a sair e passar uma noite divertida junto comigo. Está bem escuro quando eu bato à porta, portanto não posso ver quem vem abri-la, mas supondo que seja meu velho amigo, eu digo:

- Venha ao teatro comigo.

- Eu nunca vou lá - é a resposta que ouço.

- Eu sei - digo eu - é porque você agora tem medo.

- Não, eu não estou com medo; acontece que não ligo para isso.

- Deixa disso - digo eu - não aceito tal desculpa; eu sei que você gosta, e muito, mas você está com medo do novo inquilino.

- Eu sou o novo inquilino - é a resposta que ouço.

Neste caso, não estou diante do velho homem com seu aluguel perdoado, mas de um homem completamente novo, respondendo às minhas perguntas e declarando que não liga para os prazeres mundanos. Trata-se, aqui, de algo novo, mas é esta também a verdadeira posição do cristão: ele deve sempre deixar que sua nova natureza, e nunca a velha, atenda à porta.

Vamos supor agora que eu continue a bater à porta por alguns meses, e receba invariavelmente a mesma resposta. Não seria surpresa eu pensar que o velho inquilino tivesse morrido, pois ele nunca atende à porta. Assim é ele, ao menos naquilo que diz respeito ao aspecto visível da sua existência. O novo inquilino, no entanto, poderia me contar das muitas tentativas que o velho homem faz para escapar de seu confinamento, quando nada exceto a força do amigo pode evitar que ele se mostre tão mau como sempre foi. [ A. T. Schofield ]